O Monumento Funerário da Roça do Casal do Meio

O (re)monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Arrábida/Sesimbra): as “histórias” da investigação e os novos dados (1960-2013)



SOARES, R. (2014) – O (re)monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Arrábida/Sesimbra): as “histórias” da investigação e os novos dados (1960-2013). In Al-Madan Online, N.º 18, Tomo II, p. 65-74.

RESUMO
Síntese da informação produzida nos últimos 50 anos sobre o monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), conhecido desde o início da década de 1960 e referência internacional no estudo do Bronze final. Os dados bibliográficos disponíveis foram complementados e reapreciados à luz de recentes trabalhos de prospecção na envolvente do sítio arqueológico, que detectaram indícios de povoamento. Pela primeira vez, foi possível articular o “mundo dos mortos” com o “mundo quotidiano”, permitindo uma leitura integrada e a apresentação de uma perspectiva coerente sobre a fundação do monumento, no seio das controvérsias cronológicas (Calcolítico versus Bronze Final) e culturais (indígenas versus gentes orientais) que este justifica.
PALAVRAS CHAVE: Idade do Cobre; Idade do Bronze; Megalitismo; Arrábida; Povoamento.

ABSTRACT
Summary of the information made available during the last 50 years about the funerary monument of the Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), which has been known since the early 1960s and is an international landmark in the study of the Late Bronze Age. Available bibliographical data was complemented and reviewed in the light of recent prospective works around the archaeological site, which detected remnants of a settlement. It was possible to articulate the “world of the dead” with the “daily life” for the first time, thus allowing the author to have an integral understanding of the monument and to propose a new more coherent perspective on its foundation, within the existing chronological and cultural controversy (Chalcolithic vs Late Bronze and indigenous vs Oriental people).
KEY WORDS: Copper age; Bronze age; Megalithism; Arrábida; Settlement.

RÉSUMÉ
Synthèse de l’information produite ces 50 dernières années au sujet du monument funéraire de la Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), connu depuis le début des années 60 et référence internationale dans l’étude du Bronze Final. Les données bibliographiques disponibles ont été complétées et réévaluées à la lumière de récents travaux de recherche autour du site archéologique, qui ont détecté des indices de peuplement. Pour la première fois, il a été possible d’articuler le “monde des morts” avec le “monde quotidien”, permettant la lecture intégrée et la présentation d’une perspective cohérente au sujet de la fondation du monument, au sein dês controverses chronologiques (Chalcolithique versus Bronze Final) et culturelles (indigènes versus peuples orientaux) que celui-ci justifie.
MOTS CLÉS: Âge du Cuivre; Âge du Bronze; Mégalithisme; Arrábida; Peuplement.

O monumento funerário da Roça do Casal do Meio foi identificado no início dos anos sessenta por Octávio da Veiga Ferreira e por Georges Zbyszewski, no decurso dos seus trabalhos de levantamento para a Carta Geológica de Portugal – Folha Geológica de Setúbal/38-B (ZBYSZEWSKI et al., 1965). Cerca de dez anos depois, entre 16 de Outubro e 11 de Novembro de 1972, o arqueossítio foi objecto de uma escavação realizada por Konrad Spindler e por Veiga Ferreira.
Localiza-se em Sesimbra, nas terras da Quinta do Calhariz (Terras do Risco/Casal do Meio), entre o sopé ocidental da Serra da Arrábida, propriamente dita, e a encosta norte da Serra do Risco, assumindo uma situação de evidente relevo sobre todo o fértil vale (polje) do Risco, distando pouco mais de 1 km da costa atlântica (Fig. 1).
Publicada em alemão e francês (SPINDLER e FERREIRA, 1973; SPINDLER et al., 1973-74), a aparente excepcionalidade da Roça do Casal do Meio ganhou, desde então, um estatuto de referência europeia para os estudos do Bronze Final, tendo em conta as suas particularidades arquitectónicas (segundo a interpretação cronológica dos escavadores, inéditas para o período e região em questão – ocidente peninsular), a sua expressiva implantação na paisagem, por apresentar um túmulo com duas sepulturas formais (considerando a raridade dos enterramentos no Bronze Final), as propriedades do espólio exumado, a própria projecção internacional de Konrad Spindler e as tendências genéricas da época.
A escavação permitiu recuperar uma planta definida por um círculo com 11,5 m de diâmetro, com uma abertura a este-sueste com 1,20 m, delimitada, exteriormente, por um espesso muro, composto por grandes blocos ortostáticos de calcário regional, com cerca de 2,50 m de largura e atingindo 1,20 m de altura (Fig. 2-3). A abertura conduz a um estreito corredor, com 4,20 m de comprimento, que desemboca numa câmara funerária central, de planta subcircular e com um diâmetro de base de 3,3 m, supondo uma cobertura original em “falsa cúpula”. Entre o muro exterior e a câmara central foi possível observar um “corredor” circular sem aparente entrada (SILVA e SOARES, 1986: 116).
Genericamente, em termos arquitectónicos, todos os autores debruçados sobre o tema observaram semelhanças entre este monumento funerário e os de “falsa cúpula” calcolíticos – os tholoi (Fig. 4). Todavia, apesar de diversas incertezas, Spindler e Veiga Ferreira fixaram-se nos paralelos então conhecidos para a Idade do Bronze – os “protótipos” do Mediterrâneo Oriental assinalados, designadamente, em Chipre e na Sicília, sobretudo os nuraghes da Sardenha (Fig. 5). Os autores assumiram (assim) como certo que a estrutura e o seu conteúdo antropológico e material seriam coevos e correspondentes a cronologias do Bronze Final, sobretudo pelo facto de não terem identificado materiais calcolíticos durante a escavação. Por outro lado, consideraram que, quer os construtores do edifício, quer os defuntos nele sepultados, teriam origens exógenas – orientais (Fig. 6).
As escavações revelaram dois indivíduos (Fig. 7), estudados e publicados, do ponto de vista antropológico, por G. Gallay (1973): um primeiro na zona sudoeste da câmara, sepultado directamente sobre o solo, em decúbito dorsal e segundo uma orientação noroeste-sueste, com a cabeça virada para sueste e a face para norte; e um segundo, na zona noroeste da câmara, depositado sobre uma banqueta de argila com uma altura de 25 cm, jazente sobre o seu lado direito, em posição contraída, com a cabeça para nascente e a face virada a norte (GALLAY, 1973).
A insuficiência de dados de escavação não tem permitido grandes deduções antropológicas sobre o Homem da Pré e Proto-História regionais, destacando-se os trabalhos desenvolvidos a partir dos vestígios osteológicos da Lapa do Bugio, em Sesimbra (ISIDORO, 1964), e das grutas artificiais da Quinta do Anjo/Casal do Pardo (BÜBNER, 1979), em Palmela, ambos caracterizadores do Homem do Calcolítico. Ainda assim, a investigação antropológica dos vestígios osteológicos exumados na Roça do Casal do Meio permitiu caracterizar, num ténue perfil, tendo em conta a amostragem, dois homens que habitaram a Arrábida durante o Bronze Final.
Trinta anos após o primeiro estudo de Gallay, Raquel Vilaça e Eugenia Cunha publicaram em 2005, nesta mesma revista, um texto de revisão e síntese dos dados arqueológicos, cronológicos e antropológicos relativos às inumações da Roça do Casal do Meio (VILAÇA e CUNHA, 2005). As investigadoras concluíram tratar-se de dois indivíduos adultos do sexo masculino, um mais jovem, com uma idade compreendida entre os 20 e os 40 anos, e outro mais velho, entre os 40 e os 50 anos. Ambos os indivíduos apresentaram severo desgaste dentário, porém sem patologias orais associadas. Os ossos dos membros inferiores e superiores dos dois sujeitos indiciaram uma assinalável robustez, com grande desenvolvimento das zonas de inserção muscular, sugerindo um esforço físico repetido ao longo de vários anos, estimando-se uma altura de 1,70 m para um deles – uma estatura média/alta.
No que respeita à chamada “síndrome do cavaleiro”, os ossos da bacia e fémures não ofereceram informação conclusiva. Contudo, um dos indivíduos patenteou alguns possíveis indícios de ter montado a cavalo com alguma frequência. A avaliação acerca do grupo populacional de origem também não foi conclusiva, pelo facto de os ossos da face se encontrarem bastante fragmentados. Parâmetros como o índice nasal e facial poderiam estimar a origem geográfica destes indivíduos.
Os dois esqueletos proporcionaram duas amostras submetidas a análise por AMS, não tendo sido contudo possível, por motivos de acondicionamento das ossadas, diferenciar qual a amostra correspondente à sepultura 1 e à sepultura 2, respectivamente. Tendo em conta que as mortes não terão ocorrido em momentos muito distantes, tornou-se possível obter uma média ponderada das duas datações, resultando numa cronologia absoluta fixada em 1004-835 cal a.C. (2790 ± 30 BP), num período correspondente ao Bronze Final, entre os meados do séc. XI e os finais do séc. IX a.C. (VILAÇA e CUNHA, 2005: 52). De referir que estas datações vieram corroborar a datação relativa proposta por Spindler e Veiga Ferreira, produzida a partir da acertada análise do espólio por eles exumado – séc. X ou inícios do séc. IX a.C. (SPINDLER et al., 1973-74: 125-126).
Os dois homens faziam-se acompanhar de um interessante espólio votivo (Fig. 8), composto por vários artefactos de prestígio, nomeadamente objectos de bronze: duas pinças, um anel, um colchete de cinturão e uma fíbula de enrolamento no arco, com braços iguais, mola simples, fuzilhão recto e descanso. Além destes, de destacar um pente cuneiforme de marfim.
No que respeita à fíbula, é tipologicamente semelhante a outros seis exemplares identificados no nosso território, no “Mundo Baiões/Santa Luzia” – o tipo mais antigo e mais comum de fíbula peninsular é o de “enrolamento no arco” (ou Roça do Casal do Meio, Sesimbra)” (SENNA-MARTINEZ, 2010: 19). Estas fíbulas apontam para paralelos sicilianos, sendo por vezes confundidas com as “fíbulas de cotovelo” – em Cassibile datam-se, convencionalmente, do século XII a.C. (ob. cit., p. 19).
Relativamente às pinças, têm vindo a ser identificados alguns paralelos em contextos do Bronze Final do Ocidente Peninsular, por exemplo em povoados como o Castro dos Ratinhos (Alentejo – BERROCAL-RANGEL e SILVA, 2010), Monte do Frade (Beira Interior – VILAÇA, 1995; 2005) e Fraga dos Corvos (Trás-os-Montes – SENNA-MARTINEZ, LUÍS e REPRESAS, 2012). Também no contexto regional da Arrábida, na necrópole do Casalão, foi identificada uma pinça desta tipologia. No sítio do Casalão, um cabeço na encosta nascente da baía de Sesimbra, Eduardo da Cunha Serrão escavou um conjunto de sepulturas da 1.ª Idade do Ferro (segundo o autor, integráveis na 2.ª Idade do Ferro – SERRÃO, 1994: 58), contendo alguns objectos de bronze na tradição do Bronze Final da Roça do Casal do Meio, designadamente uma pinça, uma mola espiralada de fíbula e um anel (FABIÃO, 1992: 141-143; CALADO et al., 2009: 31).
Quanto ao pente de marfim, tendo em conta o suporte material em que foi produzido, aponta para uma feição exógena, de origem mediterrânea norte-africana (SILVA e SOARES, 1986: 121).
As pinças e o pente remetem-nos para cuidados pessoais e de aparência do “homem-guerreiro” da Idade do Bronze. De recordar que objectos como pinças, pentes e espelhos (entre outros, de índole marcial) surgem amiúde representados nas estelas do Bronze do Sudoeste. Para alguns autores, estas representações fazem eco de um modelo social fortemente hierarquizado, de tipo “chefado”. Este modelo parece manifestar-se, de igual forma, na Roça do Casal do Meio, pois, além do espólio, há que sublinhar o facto de, não obstante a monumentalidade da sepultura, apenas terem sido registadas duas inumações (já de si raras para a época), o que aponta para uma evidente distinção destes indivíduos – heróis fundadores? líderes guerreiros? “comerciantes ou mesmo missionários”? (CARDOSO, 2000: 65) homens “pertencentes a uma classe sacerdotal em crescente afirmação”? (CARDOSO, 1998: 31) ou membros de uma distinta linhagem de abastados indígenas “proto-latifundiários”? (SOARES, 2013a). Também não será de estranhar a total ausência das armas e dos escudos, frequentemente figurados nas estelas do Sudoeste. A deposição de armas em sepulturas do Bronze Final do Ocidente Peninsular é relativamente rara, havendo uma tendência, sim, para ocorrerem em depósitos rituais, designadamente em grutas, fendas e leitos de rio (VILAÇA e CUNHA, 2005: 55).
No que respeita ao espólio cerâmico (Fig. 9), documentaram-se apenas três recipientes: um vaso bicónico de fundo plano (Fig. 10), registado no interior da câmara funerária, com 39 cm de altura, apresentando bordo simples, sem espessamento e lábio convexo, conservando ainda, na zona externa do bojo, vestígios de reticula brunida de traço fino – “as características decorações de “ornatos brunidos”, produzidas por pontas rombas, provavelmente de madeira, constituídas por finas caneluras definindo motivos reticulados de natureza exclusivamente geométrica” (CARDOSO, 1998: 31); uma taça de carena de ombro (Fig. 11), registada no corredor, à entrada da câmara, de fundo externo ligeiramente côncavo, apresentando uma pega vertical perfurada, aplicada entre o bordo e a carena; e oito fragmentos de uma outra taça de carena de ombro (Fig. 12), de fundo aplanado, apresentando mamilo perfurado verticalmente, aplicado sobre a carena (CALADO, 1993: 354).
Os oito fragmentos foram registados de forma dispersa sobre o monumento, integrando os materiais da mamoa (HARRISON, 2007: 70). Segundo Richard Harrison, estes fragmentos não partilham das mesmas características de fabrico dos outros dois recipientes referidos. O mesmo autor admite, contudo, um estilo e produção locais para a totalidade dos três exemplares cerâmicos identificados (ob. cit.: 71, 76). Estão em causa recipientes de armazenamento, destinados, presumivelmente, à deposição ritual de alimentos (CALADO, 1993: 354).
Ainda acerca do espólio votivo, resta referir os vestígios osteológicos de duas cabras e de dois carneiros, depositados com carne aderente, testemunhando a dimensão simbólica dos rituais fúnebres da época (SPINDLER et al., 1973-74; SILVA e SOARES, 1986; VILAÇA e CUNHA, 2005; HARRISON, 2007).
Trata-se, portanto, de um conjunto artefactual bastante homogéneo, enquadrado no horizonte da cerâmica de “ornatos brunidos” do Bronze Final, a que se associam objectos em bronze de largo espectro cronológico e geográfico, recorrentes por todo o Mediterrâneo mas produzidos localmente (HARRISON, 2007: 76).
A Roça do Casal do Meio insinua, assim, o grau de diferenciação social atingido pelas comunidades do Bronze Final da região, integrada no extremo sul da grande “placa giratória” estremenha. Esta relação inter e trans-regional encontrou-se documentada pela ocorrência de peças cerâmicas de produção local, de elementos de cariz mediterrâneo, como a fíbula e o pente, e por modelos artefactuais de origem atlântica, como as peças de bronze de Alfarim (?) e de Pedreiras – machados de alvado e foice de talão, de “tipo Rocanes” (SERRÃO, 1967, 1973, 1975, 1994).
Relativamente à mal explicada e controversa questão da origem fundacional do monumento, João Luís Cardoso, em 2004, a partir das suas observações no tholos do Cerro do Malhanito (Alcoutim), na continuidade do que já vinha a ponderar há algum tempo, admite que a Roça do Casal do Meio poderá ter resultado do reaproveitamento de um monumento calcolítico, tendo em conta a simplicidade arquitectónica da sua planta e por se enquadrar nos paralelos estremenhos de tholoi (CARDOSO, 2004).
Recorde-se, a este propósito, que já em 1986, Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares denunciavam semelhanças arquitectónicas com os tholoi identificados no nosso território (SILVA e SOARES, 1986: 116); enquanto Ana Margarida Arruda também reconhece, “na sua globalidade, uma vaga proximidade formal e de soluções construtivas com os monumentos megalíticos de tipo tholos” (ARRUDA, 2008: 362).
Para Richard Harrison, encontramo-nos, efectivamente, perante um tholos calcolítico, entretanto arruinado, e que na Idade do Bronze terá sido esvaziado dos originais conteúdos funerários e escombros estruturais, recebendo no interior um reboco de argila para “cimentar” a arquitectura e acolher as novas exéquias. A cúpula não terá sido reconstruída, sendo os sepultamentos selados com um tumulus simples, composto por terra e pedras (HARRISON, 2007).
Quanto à total ausência de materiais atribuíveis ao Calcolítico, facilmente se explicará com uma acção de limpeza do monumento, aquando da sua reocupação (VILAÇA e CUNHA, 2005: 53, cf. CARDOSO, 2004; HARRISON, 2007: 65). Ainda assim, importa mencionar que nas imediações do monumento foram recentemente registos diversos artefactos enquadráveis em cronologias calcolíticas (CALADO et al., 2009: 93-99). A este propósito, há que recordar a recorrência, amiúde documentada no nosso território, de episódios de reutilização de monumentos megalíticos e de grutas, associados a acções de limpeza de espólios precedentes.
Raquel Vilaça, em 2005, recupera a questão que a investigação há muito vinha a evitar: “será o monumento contemporâneo dos enterramentos, ou trata-se de uma estrutura antiga reaproveitada? E, sendo-lhe anterior, que anterioridade é essa?” (VILAÇA e CUNHA, 2005: 53).
A investigadora de Coimbra, embora reservadamente, não se vinculando às hipóteses em causa, refere, por um lado, a constatação estratigráfica dos escavadores, relativamente ao facto de os enterramentos não terem sido realizados logo após a construção do monumento, o que abona em favor da hipótese do reaproveitamento de um tholos do Calcolítico, durante o Bronze Final. Por outro lado, recorda os oito fragmentos de uma taça carenada do Bronze Final, registados incorporando “as camadas de construção do monumento” (mamoa), um argumento tido como importante para os defensores de um original empreendimento arquitectónico nos finais da Idade do Bronze (ob. cit.: 53).
Renovando o interesse e alcance internacional do arqueossítio de Sesimbra e partindo das dúvidas e incoerências suscitadas pela investigação desde a sua descoberta, Richard Harrison publica em 2007, na obra de referência Beyond Stonehenge: Essays on the Bronze Age in Honour of Colin Burgess, um cuidado trabalho de revisão dos dados disponíveis da escavação de Spindler e Veiga Ferreira, alguns dos quais inéditos, propondo então: “a new interpretation, that the graves were placed inside a much older Copper Age Tholos after it had been cleaned out. They are not burials of immigrants from Sicily in a mock-up of a passage grave” (HARRISON, 2007: 65).
Harrison afirma, desde logo, que a Roça do Casal do Meio atraiu a atenção europeia enquanto raro exemplo dos opulentos enterramentos do Bronze Final, num monumento megalítico único, permanecendo, desde 1973, como uma destacada anomalia para os padrões da “Idade do Bronze atlântica” (ob. cit.: 65). A consequente discussão rapidamente sanou, com a generalizada tendência em aceitar que o monumento, os enterramentos e o respectivo espólio votivo seriam todos contemporâneos e correspondentes ao Bronze Final.
Nesta ordem de ideias, ressalta uma questão: porquê, depois de 40 anos de investigação arqueológica, ainda não foi identificado um efectivo paralelo para a Roça do Casal do Meio? Cada ano que passa, este arqueossítio se torna ainda mais peculiar e incomum!
Após uma atenta revisão dos dados disponíveis, sobretudo dos inéditos, e reconhecendo a relativa qualidade e rigor da escavação, mesmo segundo os padrões actuais, Harrison identifica algumas falhas e incoerências na publicação de 1973-74. Assim, contrariando as interpretações dos escavadores, avança com a proposta de que “os hierarcas que foram aqui sepultados, não eram estranhos numa terra estranha. Eram indígenas. Elites nativas” (CALADO et al., 2009: 28, cf. HARRISON, 2007).
Posto isto, coloca duas hipóteses interpretativas para a génese fundacional da Roça do Casal do Meio: “a primeira é que a singularidade do monumento se explica pelo facto de ser o reaproveitamento de um tholos, do Neolítico Final/Calcolítico, por populações da Idade do Bronze, o que levou à segunda hipótese que é da existência de um povoado do Neolítico final/Calcolítico, os construtores do tholos e de que os indivíduos sepultados da Idade do Bronze não vieram de fora mas que estavam associados a um povoado da Idade do Bronze, na área da Roça do Casal do Meio” (CALADO et al., 2009: 47, cf. HARRISON, 2007).
Na verdade, um dos principais contributos deste autor foi ter reunido argumentos suficientemente aquilatados em defesa de uma das leituras “alternativas” (a mais simples e compatível com a conjuntura arqueológica da região) que tinha sido, à partida, descartada pelos próprios escavadores: um tholos do Calcolítico, reutilizado no Bronze Final, quase 2000 anos após a sua construção e utilização primárias – with this new sequence in hand, it is now possible to restore the Tholos monument to the Late Copper Age where it belongs, and see the Late Bronze Age materials in a new light (HARRISON, 2007: 75).
Como consequência do trabalho do referido autor inglês, a questão que se colocava, então e finalmente, era: onde moravam então esses indígenas? Uma questão que ao longo da história da investigação estranhamente nunca se explorou, mesmo com o conhecimento de claros indícios para uma presença humana bem diferenciada na região da Arrábida, tanto durante o Calcolítico, como nos finais da Idade do Bronze.
Ora, nos trabalhos de prospecção arqueológica, desenvolvidos entre 2007 e 2009 no âmbito da nova Carta Arqueológica de Sesimbra, foi possível identificar, nas imediações e à vista do monumento funerário da Roça do Casal do Meio, inequívocos indícios de povoamento atribuível ao Neolítico Final/Calcolítico (Fig. 13) – o povoado aberto dos Ouriços (CALADO et al., 2009: 99). Trata-se, efectivamente, de um achado que jogaria bem com a primeira hipótese proposta por Harrison – os presumíveis construtores do monumento funerário original.
Todavia, além desta descoberta, também foi definida uma extensa mancha de ocupação atribuível ao Bronze Final, descrevendo um arco de círculo junto ao monumento (ob. cit.) – os potenciais reconstrutores/reutilizadores do monumento. Aprioristicamente e justificando a sua vasta área, mesmo descontando o actual desconhecimento do seu substrato cronológico e dos respectivos timings de ocupação (sincronias e diacronias), o povoamento aberto nas Terras do Risco poderá ter sido formado por uma solidária rede de pequenos “casais agrícolas” (Fig. 14), todos regidos por uma subordinação imposta pela eventual sede de “chefatura” no vizinho povoado fortificado de altura do Castelo dos Mouros, constituindo a base agro-pastoril de uma expectável macroestrutura de povoamento (SOARES, 2013a; 2013b). Outra alternativa, para a qual existem alguns paralelos (MATALOTO, 2012), é a de se tratar de uma “aldeia” de malha urbana pouco concentrada.
De sublinhar o facto de os vestígios relativos à área de ocupação destas duas realidades populacionais (do Calcolítico e do Bronze Final, mas também do Neolítico Antigo) se encontrarem na bordadura do mais fértil vale da região da Arrábida, o vale fluvio-cársisco (polje) do Risco – o “celeiro do Risco” (Fig. 15).
Em suma, há muito destacado na história da investigação regional (e europeia), e mesmo decorridos 50 anos após a sua descoberta, foi faltando uma efectiva e consensual compreensão fundacional para o monumento funerário da Roça do Casal do Meio, ou seja, um povoado (ou povoados) que tenham justificado este empreendimento (construtivo e reconstrutivo) dos vivos, dedicado a alguns dos seus mortos. Com as referidas campanhas de prospecção, foi finalmente revelado este lacunar “mundo quotidiano”, designadamente o supracitado povoado do Neolítico Final/Calcolítico, habitado pelos presumíveis fundadores do tholos original; e uma extensa área de ocupação atribuível ao Bronze Final, bordejando todo o perímetro das Terras baixas do Risco, exploradas pelos potenciais reconstrutores/reutilizadores do monumento.
Esta “aldeia”, aparentemente composta por uma série de pequenos “casais agrícolas”, poderá relacionar-se com uma complexa macroestruturademográfica enquadrável no Bronze Final, um vasto território sobretudo implantado ao longo da Serra do Risco e da Serra da Arrábida, integrado por outros indícios de povoamento, com funções distintas mas complementares (SOARES, 2013a; 2013b): o povoado de altura fortificado no Castelo dos Mouros (povoado central?), na vertente norte da Serra da Arrábida e com domínio directo sobre as Terras do Risco; o povoado de altura da Serra da Cela, no Portinho da Arrábida (base portuária?); o povoado de cumeada de Valongo, no topo da Arrábida (“vértice de atalaia”?); e o “casal agrícola” da Quinta do Picheleiro, no vale a norte da serra. De destacar o facto de todos estes focos de povoamento manifestarem uma clara inter-relação de comunicação e visibilidade.
Na ausência de dados de escavação que nos permitam aprofundar diacronias e confirmar presumíveis sincronias nas áreas de povoamento do Bronze da Arrábida, tendo em conta a informação alcançada nos poucos trabalhos de escavação, unicamente realizados em contextos de vocação mágico-religiosa (Lapa do Fumo, Roça do Casal do Meio e Lapa da Furada), considerando ainda os novos dados produzidos em abordagens de superfície, torna-se agora possível esboçar um coerente complexo demográfico, instalado num território específico e individualizado, com algum grau de diferenciação e de ordenamento político-administrativo, insinuando uma forte articulação com as vias de comunicação, muito em especial as fluvio-marítimas (SOARES, 2013a; 2013b).
A aguardar por expectáveis e mais aprofundados trabalhos, designadamente por via de escavações em contextos de habitat, muitas questões vão permanecer em aberto, por exemplo: qual seria o papel do (re)monumento funerário da Roça do Casal do Meio, reerguido entre a área de povoamento das Terras do Risco e o povoado de altura do Castelo dos Mouros? Quem seriam aqueles homens notavelmente diferenciados na morte, sepultados a meio caminho entre o seu “Castelo” e as suas “Terras”, dominando-as mesmo além morte?
Ainda assim, a Serra da Arrábida afigura-se hoje como um interessante “iceberg de Bronze”, no qual se pode descortinar uma florescente e vigorosa cota emersa no horizonte cultural da última fase da Idade do Bronze do Sul da Estremadura.
Resta referir que o monumento funerário da Roça do Casal do Meio se encontra classificado enquanto Imóvel de Interesse Público desde 1984 (Dec. N.º 29/84 de 25 de Junho). No decorrer dos meses de Setembro e Outubro de 2013, sofreu uma acção de desenterro e limpeza, objectivando a sua valorização no âmbito da candidatura da região da Arrábida a Património Misto da Humanidade (UNESCO). Não deixando de constituir uma excelente oportunidade para um melhor esclarecimento sobre algumas das questões aqui tratadas, do ponto de vista arqueológico, tendo em conta os objectivos específicos e limitados da intervenção, não se esperam significativas novidades.


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