Lapa da Furada (do Piolho) | Arrábida

Trata-se de uma cavidade cársica situada na Serra da Azóia, em Sesimbra, na paisagem sul do Cabo Espichel, a cerca de 600 m da aldeia da Azóia. Também é localmente conhecida pelo microtopónimo de “Lapa do Piolho”. Aberta na cota dos 159 m, em unidades sedimentares do Jurássico Médio (J2 pe), esta cavidade fóssil desenvolve-se ao longo de uma junta de estratificação, com um desnível semi-vertical de -43 m, segundo uma orientação na tendência dos 210º, ocupando uma área total de aproximadamente 409 m2 e arrumando-se em várias galerias dispostas em pelo menos três patamares de profundidade. O primeiro patamar/galeria comunica com o exterior através de uma pequena entrada vertical “bífida”, com cerca de 1 m x 1,50 m, produzida pelo cruzamento de uma diaclase com a junta de estratificação. A descida conduz à penumbra de uma pequena sala vestibular, com aproximadamente 50 m2, área onde se realizou a escavação arqueológica. Esta sala de entrada comunica, por sua vez, com uma outra, de maiores dimensões, por onde se pode descer para o nível inferior da cavidade, através de um tramo vertical de 12 m. Neste patamar inferior abre-se a maior galeria da cavidade, com uma área aproximada de 110 m2. A gruta continua a desenvolver-se até aos 43 m de profundidade, estreitando ao longo de uma fenda que acaba por impossibilitar a progressão.
A primeira referência bibliográfica à Lapa da Furada deve-se a Eduardo da Cunha Serrão (Serrão, 1962), partindo da informação dos seus “achadores”: Rafael Monteiro, Duarte Mafra e Manuel Cabrita Ribeiro Cruz. O autor atribui à estação uma cronologia do Bronze Médio. Mais tarde, na sua Carta Arqueológica de Sesimbra (Serrão, 1973; 1994), Cunha Serrão faz referência a trabalhos de prospecção, desenvolvidos entre 1957 e 1958, nos quais foram registados diversos fragmentos cerâmicos atribuíveis ao Calcolítico e à Idade do Bronze, além de um importante espólio antropológico. Contudo, apenas em 1992, com João Luís Cardoso, foram encetados trabalhos de escavação arqueológica, limitados à sala de entrada (Cardoso, 1993). Estes trabalhos justificaram uma nova campanha de escavação, em 1994, possibilitando, segundo o autor, a integral conclusão da exploração arqueológica da referida área (Cardoso e Cunha, 1995).
A estratigrafia antrópica permitiu isolar 4 Camadas, descritas em 3 cortes, numa área quadricular de 20 m2, destacando-se, na Camada 2, com 20 cm, um depósito contínuo e homogéneo de ossos humanos desconexos, associados a materiais neolíticos e do “Bronze Médio”. Tal evidência sugeriu, segundo os autores, um único e rápido momento de deposição secundária, de ossos provenientes de outro local, resultando num aparentemente pouco importante ossuário. Esta interpretação ganhou substância no facto de, à abundância de ossos corresponder uma desproporcional e “desinteressante” quantidade de espólio votivo, insinuando, no momento da transladação, uma selecção de peças ainda com interesse ritual ou funcional. Posto isto, apenas restaram residuais fragmentos cerâmicos sem proveito e pequenos artefactos líticos, dificilmente visualizáveis (algumas lâminas, pontas de seta e uma conta de colar). Também foram documentados alguns materiais que remetem para uma ocupação do Neolítico Final (Camada 3): um machado e uma enxó, registados à entrada da cavidade, completamente isolados do posterior depósito antropológico e que podem indiciar práticas funerárias durante o Neolítico Final, à imagem do verificado na Lapa do Bugio (Cardoso, 1992).
Porém, a integração dos materiais exumados no depósito funerário revela incoerências e disparidades crono-culturais. Os autores propõem uma cronologia absoluta do ossuário fixada “entre cerca de 2700 e 2450 anos a.C., a que corresponde o Calcolítico pleno da Estremadura”, e uma cronologia relativa dos materiais cerâmicos da Idade do Bronze, “coevos da remobilização daquele conjunto, no qual se encontravam amalgamados”, situada entre 1700 e 1300 a.C., “na transição do Bronze pleno (horizonte do Catujal) para os primórdios do Bronze Final” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 55) – “consequentemente, pode concluir-se que foram populações da Idade do Bronze as responsáveis pela acumulação do ossuário, mas não à custa dos despojos dos seus próprios elementos” (ob. cit., p. 51).
Posto isto, os autores consideram possível que tenha ocorrido, em “plena” Idade do Bronze, uma acção de limpeza de um depósito osteológico primário das proximidades, 1000 anos após a sua deposição calcolítica, provavelmente para uma reutilização funerária e/ou ritual da cavidade vizinha. Entretanto, nesse mesmo espaço, terá sido produzida uma camada com materiais da Idade do Bronze, sobreposta à camada do nível sepulcral calcolítico, antes de ambos serem totalmente misturados aquando da sua transladação para a Lapa da Furada. Por fim, após uma acção de limpeza ritualizada, dá-se uma única deposição destes materiais na Furada, respeitando o pré-existente nível do Neolítico Final (machado e enxó). O momento de transladação dos despojos da necrópole primária para a Lapa da Furada deverá ter sido ritualizado em cerimónias fúnebres que incluiriam, provavelmente, fogueiras de purificação. Esta sugestão, além dos paralelos documentados para o Neolítico e Calcolítico do Centro do País, é deduzida pela ocorrência de numerosos carvões misturados com os ossos humanos.
Os autores também descartam a hipótese de um depósito primário de origem na vizinha Lapa do Bugio (Cardoso, 1992), pelo facto de as suas tumulações remontarem, sobretudo, ao Neolítico Final, mais antigas, portanto, que a cronologia absoluta obtida para a Furada.
A respeito dos materiais datáveis da Idade do Bronze, estes ocorreram na Camada de superfície (Camada 1), associados a cerâmicas medievais e modernas, e na Camada 2, acompanhando os restos antropológicos (Cardoso e Cunha, 1995, p. 18). Estão em causa, além de numerosos fragmentos cerâmicos, uma conta de osso tubular, com perfuração cilíndrica obtida com recurso a furador metálico, e de dois artefactos de “cobre”: um fragmento de anzol de secção quadrangular e uma pequena lâmina curva, com dois entalhes de fixação opostos. Se para o primeiro é possível considerar uma cronologia ainda do Calcolítico, o segundo remete para tipologias já da 1.ª Idade do Bronze, em consonância com muitos dos materiais cerâmicos. As reduzidas dimensões do “punhal” não apontam para qualquer funcionalidade que não a “votiva”, de cariz marcadamente simbólico.
A cerâmica da Idade do Bronze da Furada caracteriza-se por uma boa variedade de recipientes: grandes vasos em forma de saco, de paredes verticais na parte superior, ou suavemente introvertidas, bordos, com ou sem espessamento, e fundos planos; recipientes de menores dimensões, mas formalmente idênticos aos anteriores, os chamados “tronco-cónicos” da Idade do Bronze, “sucedâneos dos “copos” do Calcolítico inicial da Estremadura” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 19); taças carenadas (fig. 99), apresentando carenas bem definidas ou esbatidas; fundos planos com ligação esbatida à pança (fig. 100); numerosas taças de calote, de fundo mais ou menos achatado e de bordos com ligeiro espessamento externo; esféricos médios, de bordo não espessado ou ligeiramente exvertido, análogos às cerâmicas do Neolítico. “De salientar que todas as formas citadas se encontram representadas em contextos do Bronze médio da bacia do médio e Alto Mondego” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 19). No que se refere às pastas, estas apresentam-se, regra geral, grosseiras a muito grosseiras, incorporando volumosos grãos de quartzo e de feldspato, além de menos expressivas micas.
Apesar de residuais, algumas das formas decoradas, isoladas de um conjunto predominantemente liso, permitem-nos propor uma parcial integração em momentos já do Bronze Final. Na escassa amostra, foi possível observar fragmentos com acabamento cepillado; potes de colo estrangulado e de bordo ligeiramente exvertido, em aba, apresentando impressões espatuladas no lábio, produzindo um bordo denteando (com paralelos na Tapada da Ajuda); peças decoradas com cordões plásticos, pouco proeminentes e verticais, das quais se destaca um grande vaso negro brunido. É de salientar o facto de estes aspectos decorativos implicarem uma longa diacronia.
Tendo em conta a análise da cultura material e do próprio contexto, fica no ar a possibilidade de algum grau de continuidade na utilização desta cavidade até ao Bronze Final, não obstante as conclusões cronológicas dos autores. Esta utilização seria de carácter sagrado e não funerário, na linha do verificado noutras cavidade por aqui tratadas – “grutas-santuário”. Aliás, também parece razoável admitir que os fenómenos interpretados pelos autores tenham ocorrido todos no mesmo palco – na própria gruta da Furada.
Resta recordar que a escavação da Lapa da Furada resumiu-se à primeira sala, a vestibular sala de entrada, remanescendo outros espaços com evidente potencial arqueológico. A este propósito, em recentes visitas realizadas ao local pelo signatário, foram assinalados vestígios antropológicos e cerâmicos noutros espaços não intervencionados, na mesma cota da área da escavação.

Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ricardo Soares
2012-2013