Pego das Pias



No território odemirense, região bem marcada pelo vale do Rio Mira e pelo curso de inúmeras ribeiras por ele colectadas, existem vários pegos – locais escavados entre afloramentos rochosos pela força erosiva das águas e dos materiais arrastados. Ocultos pela frescura de uma vegetação exuberante, são lugares onde habitam lendas e histórias, uma herança de cultura imaterial cuja origem se perde nos tempos. Nos pegos ecoam histórias de grades de ouro, mouras encantadas e homens-peixe, entre outros seres fabulosos.

Entre São Luís e Odemira, numa área isolada no norte da Freguesia de São Salvador, nos Ameixiais, entre os afloramentos de xisto, o curso da Ribeira do Torgal e a paciência do tempo foram esculpindo um destes locais encantados – o Pego das Pias.

O seu nome tem origem nas diversas cavidades circulares escavadas na rocha pela hidrodinâmica das correntes, pela acção mecânica dos seus redemoinhos e dos seixos arrastados, associada à erosão química de águas “orgânicas” e de elevada acidez. Não sendo um fenómeno exclusivo desta região, noutras paragens as “pias” também são conhecidas por “marmitas”.

O Pego das Pias encontra-se praticamente imaculado de marcas de intervenção humana, mantendo-se como um autêntico ex-líbris natural da região, proporcionando um enorme interesse à visitação de curiosos e amantes do património natural. Do ponto de vista da Arqueologia, este local manifesta uma excepcional carga simbólica, com um imenso potencial enquanto santuário rupestre, ficando a aguardar expectáveis acções de prospecção, com particular atenção para a ocorrência de arte parietal.

Posto isto, Odemira vai contar as «Memórias dos Pegos» nas suas Jornadas Europeias do Património. Assim, no dia 29 de Setembro, a partir das 13 horas, será realizada uma visita ao Pego das Pias, um dos pegos mais conhecidos da região, com a presença da geóloga Madalena Silva que fará uma breve explicação sobre o local.

A visita ao Pego das Pias permitirá uma viagem pela geologia, hidrologia, arqueologia, história e antropologia cultural do local. Depois das explicações, será apresentada uma dramatização da Lenda do Pego das Pias, pelo actor e encenador Rui Pisco.

As Jornadas Europeias do Património são uma iniciativa anual do Conselho da Europa e da União Europeia, com a coordenação nacional do IGESPAR – Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico, à qual o Município de Odemira se associa promovendo desde há vários anos diversas atividades no seu território.














Reflexos pré-históricos?


Azenha do Mar


Na Praia da Seiceira (Brejão | Odemira), entretanto renomeada popularmente por Praia da Amália pelo facto da célebre diva do fado ali ter construído a sua casa de praia, encontra-se abandonado um interessante engenho de moagem - a Azenha do Mar. Esta recordação etnográfica deverá estar na origem do topónimo "Azenha do Mar", um pequeno porto entre Odeceixe e Odemira.


Lapa da Cova | Arrábida | Sesimbra



O geomonumento da Lapa da Cova localiza-se na vertente sul da Serra do Risco, em Sesimbra, perto da povoação de Pedreiras, a cerca de 3 km do “epicentro” do povoado do Risco. Apresenta-se na cota dos 260 m da mais elevada arriba calcária da Europa continental. Trata-se de uma cavidade cársica fóssil, constituída por duas salas, abertas em unidades sedimentares do Jurássico Médio (J2 pe) pela suposta combinação da actividade tectónica com a acção hídrica. A cavidade desenvolve-se ao longo de uma diaclase principal, longitudinal à sala de entrada, de orientação aproximada sudeste-noroeste (da entrada para o interior), sendo cruzada por outras diaclases secundárias.


Morfologicamente, e muito genericamente, a Lapa da Cova caracteriza-se por uma galeria principal ascendente, com um irregular desnível do chão com cerca de 10 m, ao longo de cerca de 30 m de profundidade. Tem cerca de 10 m de largura média, 15 m de altura à entrada e 2 m no topo. No topo existe uma plataforma que comunica, à direita, através de uma rampa descendente, com uma pequena galeria apendicular, alvo prioritário da escavação a que foi sujeita. A galeria principal apresenta um desarranjo estrutural, um caos de blocos de grandes dimensões, colmatados, no topo da sala, por “recentes” (na Era geológica) depósitos sedimentares margo-argilosos, fenómeno que também contribui para a difícil interpretação da sua génese geomorfológica. De acrescentar, ainda, a pobreza de fenómenos de concrecionamento.
Em termos ambientais, estamos perante uma cavidade senil e muito seca. À medida que se penetra no seu interior, subindo o seu desnível, a temperatura aumenta e estabiliza gradualmente (+/- 20/22º de temperatura – média anual da envolvente do sítio), enquanto a luz se perde na penumbra, dando lugar à total escuridão no interior da pequena galeria no topo.

O seu microtopónimo é interessante, pelo facto de ser redundante: “Lapa da Cova”. O acesso ao sítio não é fácil, pela sinuosidade, inclinação e vegetação da escarpa onde se localiza, podendo ser feito por baixo, a partir do mar, subindo penosamente pela enseada da Cova/Calhau da Cova (Cabo de Ares); ou por cima, a partir do topo da arriba, por uma rampa natural, ou pela meia encosta poente, aproveitando o ligeiro degrau proporcionado pelo topo de um cone de dejecção.


A manifesta relação desta gruta com o mar merece realce, partindo-se de um conjunto de observações realizadas in loco. Desde logo, o contacto visual com a Cova só é possível a partir do mar – um “grande buraco negro” em fundo calcário claro. Proveniente de sul, qualquer embarcação consegue facilmente vislumbrar o “buraco” da Cova a uma distância considerável, revelando-se, esta, como uma boa referência visual. Na verdade, as embarcações oriundas de sul (designadamente do Mediterrâneo), após dobrarem o Cabo de São Vicente/Sagres, e seguindo uma rota aos 0º (norte), podem, em dias de boa visibilidade, descortinar a silhueta da Arrábida a partir de Sines, na forma de um verdadeiro marco paisagístico para a entrada no estuário do Rio Sado, transversal à linha de costa - ver link. A própria Lapa da Cova é visível a longa distância, o que contribui para a sua natural relevância no horizonte de eventuais “rituais de chegada” – antigos navegantes que agradeceriam o sucesso das suas épicas viagens, gratificando os seus deuses com cultos, oferendas e rituais de comensalidade. Neste sentido, torna-se possível imaginar esta cavidade enquanto “santuário natural de chegada”, nomeadamente para marinheiros fenícios. Ainda a este propósito, será oportuna a referencia ao episódio homérico de Odisseu na Gruta do Ciclope.


A partir de dentro, do seu “altar” no topo, e olhando para o exterior, apenas se avista o azul do mar – “ouro sobre azul!”. Da sua monumental entrada, em “arco gótico”, é possível controlar visualmente a desembocadura do Sado, os recortes do seu estuário e a “ponta” de Abul, sendo praticável algum grau de intercomunicação com este estabelecimento (fogo e fumo). Em dias de excepcional visibilidade, o olhar pode percorrer toda a costa sul, a partir de Tróia, e, no limite do alcance visual, torna-se mesmo possível vislumbrar a Serra de Monchique (a grande referência paisagística para o Promontorium Sacrum).


No que diz respeito à Arqueologia, a sua caracterização foi realizada no contexto dos trabalhos de prospecção para a nova carta arqueológica do concelho de Sesimbra (2007-2009 - Calado et al., 2009). A preliminar interpretação cronológica, apenas baseada em materiais cerâmicos de superfície, acabou por ser corroborada, em Outubro de 2009, pela descoberta ocasional de um brinco de ouro, correspondente a cronologias relativas da 1.ª Idade do Ferro. Neste contexto, e face às recentes notícias de destrutivas actividades detectoristas, foi interposto um pedido de escavação à entidade tutelar (IGESPAR) que, sendo deferido, enquadrou legalmente os trabalhos de limpeza e escavação, iniciados em Janeiro de 2010. Ao abrigo de um protocolo com a Câmara Municipal de Sesimbra, a escavação tem sido dirigida, desde então, pelo Dr. Mário Carvalho, sob a coordenação científica do Professor Doutor Manuel Calado, contando na equipa com o signatário (Ricardo Soares - FLUL), Miguel Amigo (FBAUL) e com o apoio espeleológico de alguns membros do CEAE-LPN (Centro de Estudos e Actividades Especiais da Liga para a Protecção da Natureza), designadamente Rui Francisco. Optou-se por uma equipa reduzida, com experiência e formação espeleológica, tendo em conta as especificidades do sítio e as limitações espaciais e logísticas.

2.º prémio na categoria "Escavações e outros trabalhos de campo
no 1.º Concurso de Fotografia da Associação de Arqueólogos Portugueses
A interpretação das estratigrafias em contexto de gruta constitui, por vezes, um processo particularmente complexo, por estas se apresentarem afectadas por intensos fenómenos de bioturbação. No caso da Lapa da Cova, observou-se uma estratigrafia pouco espessa e bastante perturbada, pelo facto de ter sido intensamente utilizada, em época recente, como curral de caprídeos (facto documentado artefactualmente por objectos de “arte de pastor”) e, até à actualidade, por um “bando” de cabras assilvestradas, além dos habituais pequenos roedores e texugos, amplamente documentados por restos ósseos. Ainda assim, tem sido possível avançar alguns considerandos.


Os dados preliminares da escavação foram, em parte, partilhados no seu blogue (SAFA - Santuários Fenícios da Arrábida), apontando, segundo os responsáveis, para uma ocupação mágico-religiosa no decorrer da 1.ª Idade do Ferro. De salientar o facto de não ter sido identificado qualquer vestígio antropológico durante a escavação, o que remete para uma utilização exclusivamente sagrada enquanto santuário, ficando excluída a hipótese funerária. Acresce o registo, no patamar superior da galeria principal, de um grande depósito de cinzas, insinuando um provável “altar de fogo”, dejectando, em cone, para a pequena sala apendicular, que parece ter servido de espaço de amortização da maior parte dos materiais registados (depósito votivo? restos de rituais de comensalidade?).
Esta atribuição crono-funcional foi documentada por abundantes artefactos de origem mediterrânea: uma boa quantidade de cerâmica a torno, correspondente a um diversificado conjunto de recipientes (cerca de 30/40), na sua maioria contentores (ânfora e pithoi); um cossoiro; cerca de duas centenas de contas de colar (cornalina, pasta vítrea e outras matérias-primas mais residuais – quartzo hialino, olivina e osso); objectos de bronze (uma fíbula muito fragmentada e de difícil caracterização, um botão cónico com duplo apêndice de preensão, um espeto/obelos, uma “mãozinha”, possivelmente proveniente de uma pega de braseira, e dois pequenos presumíveis ponderais); e peças de adorno em ouro (um brinco, uma arrecada e uma pequena conta esférica).


Além destes materiais, na globalidade remetendo para proveniências mediterrâneas, também foram exumados residuais fragmentos de cerâmica manual, de aparente produção local/indígena e atribuíveis ao Bronze Final. No caminho de acesso à cavidade, a partir do mar, também foi registada a ocorrência de alguns fragmentos de cerâmica manual, tal como no acesso poente, a partir da Serra da Achada (nomeadamente um mamilo alongado). Atendendo ao isolamento e dificuldade de acesso ao sítio, talvez não seja de estranhar que os vestígios detectados se limitem exclusivamente à ocupação proto-histórica e à ocupação pastoril, já em época actual ou subactual. Na verdade, considerando o facto de a cavidade apenas poder ser vista do mar, sendo o seu acesso bastante “afoito”, é de admitir que a sua descoberta tenha sido feita por marinheiros.


Relativamente ao supracitado “botão de bronze”, às suas mais (re)correntes interpretações, enquanto acessório de vestuário ou de arreio de cavalo (sublinhando, neste caso concreto, que os seus orifícios não permitem passar tiras de couro), poderá acrescentar-se uma eventual função enquanto ponderal (suspensão pendular?), em associação à ocorrência de dois presumíveis ponderais de bronze no mesmo contexto. Esta possibilidade parte da interpretação dada a objectos em tudo similares, abundantemente registados em Cancho Roano [1] (finais do século VI/inícios do século IV a.C.).


Segundo Manuel Calado [2], tendo em conta que os materiais ainda se encontram em fase de estudo, “a genérica apreciação do conjunto artefactual propõe uma ocupação de razoável diacronia (alguns séculos), iniciada numa fase precoce da colonização fenícia”, considerando, designadamente, a existência de uma ânfora produzida em torno, apresentando uma cozedura redutora e ornatos brunidos, replicando o “gosto” da cerâmica indígena e sugerindo, por isso, um momento antigo do contacto – “santuário de chegada” (no duplo sentido). Porém, também parece claro que o grosso dos materiais exumados se enquadra num âmbito cronológico mais tardio e ajustado ao genérico panorama actualmente estabelecido, designadamente os pithoi e o “botão” metálico, com paralelos dentro dos séculos VI-V a.C. (por exemplo, Celestino Pérez, 2003; Arruda, 1999/2000).
Será neste contexto pertinente referir a eventual relação do “santuário natural” da Cova com o estabelecimento fenício de Abul, fundado ex novo em meados do século VII a.C. (Mayet e Silva, 2000) na margem direita do Sado, a meio caminho entre Setúbal e Alcácer. Trata-se de um edificado com alguns atributos funcionais de ordem sagrada, curiosamente alicerçado sobre um embasamento fundacional de brecha da Arrábida, constituído por peças na sua maioria de textura rolada (Mayet e Silva, 2000, p. 134). Este aspecto é interessante pelo facto de sugerir a recolha deste conglomerado geológico em algumas praias, em determinados pontos de ocorrência da costa da Arrábida – designadamente nas proximidades da Lapa da Cova.

Em suma, além da marcada ocupação durante a Idade do Ferro, será de considerar o conhecimento desta cavidade pelas comunidades indígenas, durante o Bronze Final, tendo em conta a sua proximidade relativamente ao(s) povoado(s) das Terras do Risco e ao monumento funerário da Roça do Casal do Meio. Isto pode implicar, por um lado, uma utilização anterior à Idade do Ferro (muito residualmente manifestada pela ocorrência de escassos fragmentos de cerâmica manual); por outro, durante a ocupação da Idade do Ferro, a provável convivência e partilha deste espaço e algum grau de participação nos rituais ali praticados, por parte dos indígenas do Risco, admitindo-se, mesmo, uma fundação exógena, relembrando o difícil acesso e a visibilidade exclusiva a partir do mar. Por fim, de referir, a cerca de 1.5/2 km para poente da Lapa da Cova, duas estações de ar livre enquadráveis na 1.ª Idade do Ferro, recentemente identificadas no âmbito dos trabalhos para a Carta Arqueológica de Sesimbra – Meia Velha e Casa Nova.


[1] “En definitiva, después de dar continuas vueltas a la cuestión y con los datos que nos ha proporcionado un nuevo análisis de estos botones, donde hemos tenido en cuenta su dispersión, medidas, peso y, fundamentalmente, su asociación con otros elementos aparecidos en el entorno donde fueron hallados, hemos concluido que los mismos podrían haber correspondido a los diferentes conjunto del sistema ponderal que tan bien representados están en el yacimiento” (Celestino Pérez e Zulueta, 2003, p. 67).
[2] Informação pessoal que se agradece, em parte publicada no referido blogue da escavação.

Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ricardo Soares
2012-2013